Design culinário
Por Mauro Marcelo Alves*. Especial para a The Traveller
A fatia de cordeiro com feijão branco chegava ao prato com a carne de um lado e a colherada do legume no outro. Simples assim. Ou a breguice imperava em cascatas de camarão e crepes flambados na mesa ao lado, defumando todos em volta. Mas, por volta dos anos 1970, um movimento nascido na França, a nouvelle cuisine, acrescentou outro ingrediente aos pratos dos restaurantes: a estética. Em seguida veio a cozinha molecular, sobretudo pelas mãos e mente do genial chef catalão Ferran Adrià – quando o mais importante era desconstruir o já feito – até chegar aos dias de hoje, em que os cozinheiros têm de cutucar a cabeça para fazer de seus pratos uma pintura mastigável.
É a moda do food and design atravessando continentes, indo do pequeno bistrô aos classudos restaurantes três estrelas Michelin. Nunca foi tão decisivo ver antes de comer e os chefs sabem que esse cartão de visitas de um prato predispõe o cliente a apreciar seu sabor (bom, nem sempre funciona). Em alguns países, França principalmente, escritórios de design que antes se dedicavam aos objetos ou criações visuais passaram a prever de que forma o conteúdo de panelas iria ganhar os contornos de uma obra de arte ao chegar diante do cliente.

Por enquanto, chefs fingem não se interessar muito pela ajuda de outros artistas, e os próprios escritórios não revelam para quem trabalham – afinal, pode parecer suspeito alguém apresentar uma criação sua com outra assinatura no rodapé do prato. “Os chefs não gostam de compartilhar a criação. É um trabalho duro e exigente marcado pela organização piramidal das brigadas de cozinha. Eles não têm necessariamente a abertura de espírito para mudar suas referências de hoje para amanhã”, declarou o designer francês Stéphane Bureaux, um dos pioneiros da área, que citou como exceção justamente o irrequieto Ferran Adrià.
Melhor falar dele, então. Ultracriativo, Adrià revolucionou a culinária em seu restaurante El Bulli, na Catalunha, onde servia um menu de 35 pratos a cada cliente – isto é, 35 pequenas demonstrações de singular apelo visual e gustativo. Não por acaso e por ter sido o restaurante mais inovador do planeta, ganhou o título de melhor do mundo por cinco anos seguidos do "World's 50 Best Restaurants" até fechá-lo em 2011, transformando- o em fundação de pesquisas.
Outro pioneiro do design culinário é Marc Brétillot, que criou essa disciplina em 1999 na ESAD (Ecole Supérieure des Arts Décoratifs) de Reims, na França, justificando-a assim: “Come- -se três vezes por dia, enquanto que apenas algumas cadeiras são compradas durante a vida. Portanto, devemos dedicar mais energia à alimentação do que à mobília”. Por sua influência e ineditismo, formou vários designers culinários. Entre eles Marion Chatel-Chaix, que tem uma ótima expressão para definir seu trabalho: “infusão criativa”. Com seu Studio Exquisite (nome a partir da palavra francesa exquis, significando refinamento, delicioso etc.), ela trabalhou para o setor de moda e hoje se dedica a projetos da área da alimentação, inventando, por exemplo, guardanapos comestíveis ou L’éclair Flambé, para comer após ser incendiado com uísque – ela saberia que, em português, esse doce é chamado de bomba?

Boa parceria e laranja perfeita
A indiscutível influência da cozinha francesa no mundo continua gerando expectativas e desafios aos seus empreendedores mais visíveis, como o chef Alain Ducasse, coproprietário de vários restaurantes no mundo. Ele, de forma um pouco diferente de Adrià, já que tem a necessidade sazonal de criar, provar e aprovar centenas de pratos junto com suas equipes de cozinheiros, não nega que é desejável uma parceria com designers. “Essa parceria se torna produtiva quando o cozinheiro ousa convidar criadores que, a priori, estão distantes do mundo da restauração. As diferentes perspectivas do cozinheiro e do criador sobre o ato de alimentar dão origem a ideias notáveis”.
Ideia notável teve o chef inglês Heston Blumenthal ao desenvolver sua célebre “laranja perfeita”. A complexa elaboração, curiosamente inspirada em receita medieval de carne e frutas dos anos próximos a 1500, permitiu a ele e ao chef Ashley Palmer-Watts, que juntos fizeram a pesquisa da antiga cozinha inglesa, avançar no conceito do design culinário. Principiando por um cozimento sous vide de fígado de galinha no aparelho de cozinha Thermomix – uma versátil engenhoca moderna queridinha de cozinheiros amadores e profissionais –, Blumenthal e Palmer-Watts transformam o corriqueiro ingrediente em algo aveludado e delicioso, “embriagado” com uma redução de vinhos Madeira, Porto branco e tinto e conhaque. E em seguida, formatado como uma esfera, a massa de fígado é mergulhada em gelatina de tangerina para criar sua “casca” (as folhas, bem, não são comestíveis). A iguaria é servida no Dinner by Heston Blumenthal do Hotel Mandarin Oriental Hyde Park, Londres – temporariamente fechado após o incêndio que atingiu o hotel em junho desse ano.
Muitos outros chefs brilham com suas exibições pictóricas, como o basco Eneko Atxa, do restaurante Azurmendi, perto de Bilbao (um dos mais jovens chefs a receber três estrelas do Guia Michelin); o francês Jean Sulpice, do restaurante com seu nome em Val Thorens, nos Alpes; o catalão Albert Adrià, irmão de Ferran, em seu restaurante Tickets de Barcelona; o francês Daniel Humm, do Eleven Madison Park, de Nova York; os brasileiros Atala, do D.O.M., e Ivan Ralston, do Tuju, ambos de São Paulo. E sempre será lembrado o grande chef francês Joël Robuchon, recentemente falecido, que elevou seus pratos a obras-primas de bom gosto e sabor, como o seu caviar osciètre dans une délicate gelée.
Se a nouvelle cuisine francesa revolucionou a apresentação dos pratos, começando por uma minimalista salada de vagens do grande chef Paul Bocuse e passou pela molecular dos processos químicos e físicos dos ingredientes, hoje a cozinha moderna se exprime = cada vez mais na valorização de bons produtos regionais, muitos do quais desconhecidos da maioria do público ou antes menosprezados. Folhas, raízes, frutos, grãos, algas e temperos nativos embelezam carnes, peixes e aves ou são personagens principais de pratos vegetarianos. É o atual protagonismo dessa cozinha que mexe com todos os sentidos a partir do primeiro olhar. Uma evolução do ver e comer.
* Mauro Marcelo Alves - jornalista, escritor e chef de cozinha, é autor de Vinhos, A Arte da França, e consultor enogastronômico
